Quem nunca folheou um livro tão bom que até se esqueceu do tempo? No Instagram do Livres Livros, uma foto de um senhor eletricista sorridente, sentado no chão em meio a obras literárias, chamou a atenção dos seguidores da página.
A legenda confirmou que ali tinha uma conexão bonita entre aquilo que traz conhecimento – a leitura – e quem está sempre em busca de aprender mais.
A pessoa que está na foto é o eletricista Carlos, 45 anos. No dia do registro, ele estava na sede do projeto fazendo um serviço elétrico. Como sumiu por um tempo, a idealizadora do Livres Livros, Raissa Martins, foi procurá-lo e, para sua surpresa, o encontrou concentrado lendo.
“Pedi licença para tirar a foto, ele com o sorriso largo me disse que estava amando aquele livro. Eu disse: ‘é seu!’. Rapaz, esse homem ficou feliz igual criança. Aí reforcei: ‘escolha o livro quiser’. Ele saiu, no final do dia, com uma caixinha cheia informando que ajudaria nos estudos porque ele deseja se formar em Direitos Humanos”, contou na postagem do Instagram a advogada, empreendedora social e escritora Raissa Martins.
“Eu gosto mesmo, eu amo isso aí”, confirmou Carlos, se referindo ao tempo dedicado à leitura. “Sentei, olhei para os livros e achei interessante. Tinha de Ciências, falando do corpo humano, fui pra Geografia e História do Brasil, que eu gosto muito. Aí eu pego um, pego outro e não vejo o tempo passar”.
Eletricista há 20 anos
Com mais de 20 anos trabalhando como eletricista, Carlos ainda não concluiu o Ensino Médio, mas já mira no Ensino Superior. Ele acredita que ler é uma forma de nos tornarmos “mais esclarecidos e também passar conhecimento para outras pessoas”.
A leitura se fez mais presente em sua vida por conta da religião.
“Sou evangélico e, como nós lemos muito a Bíblia, a história judaica e seus antepassados, passei a ficar amante da leitura. De uns nove anos pra cá, foi que eu passei a ler bastante. Não só a Bíblia, mas outros livros também”, conta ele que, em segundo lugar de preferência elege os títulos da área de Psicologia.
“Depois, vêm os livros de Ciências, sobre corpo humano e a mente. E tem também os dicionários que eu gosto muito”, revela acrescentando o interesse por dicionários da língua aramaica e hebraica.
A leitura de Carlos
Um livro de latim estava entre os que ele escolheu para levar para casa, fruto da doação do projeto Livres Livros.
Além desses, pegou um exemplar do Vade Mecum – Acadêmico de Direito, um livro sobre o código penal e outro sobre a constituição nacional.
Estes últimos servirão para os projetos de estudo futuro na área de Direitos Humanos, área que ele já tem certa vivência por prestar serviços a uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), na capital baiana, que lida com questões sociais.
Mais uma vez, se formando nessa área, sua intenção é usar seus conhecimentos para ajudar pessoas menos favorecidas.
“Quero fazer faculdade, eu amo leitura, quero ajudar o próximo, entendeu? Essa é uma área que eu posso ajudar muita gente”, explicou ele, que também torce para receber ajuda para conquistar o seu sonho.
O projeto e a rede de transformação social pela leitura
O Livres Livros é um movimento de mobilização social que tem a leitura como ponto de partida para mudanças de vidas. Para a Raissa, o encanto de seu Carlos pela leitura serve como um belo exemplo de que as pessoas, independentemente da classe social e do nível de conhecimento que possuem gostam, sim, de ler.
E é pra quebrar essa ideia que o projeto nasceu lá em 2015, espalhando minibibliotecas pela cidade de Salvador.
Raissa lembra que uma das coisas que mais a marcaram no lançamento do projeto foi a descrença de algumas pessoas na ideia. Para elas, “o povo não gosta de ler”. Persistente, de início, ela teve que tirar dos próprios recursos para mostrar o contrário.
“Nesses seis anos de trajetória, foram 60 minibibliotecas instaladas em ambientes públicos e nenhuma sofreu vandalismo. Isso é uma vitória para mostrar a essa mesma sociedade que achava que a gente não deveria apostar nisso que, na verdade, a população é marginalizada o tempo inteiro. Quando se fala as que ‘pessoas não gostam de ler’, estamos generalizando e criando uma crença coletiva que nos move na direção de não apostar na leitura, no conhecimento e na educação”, reflete Raissa.
Como funcionam as bibliotecas
Essas bibliotecas são pequenas caixas em formato de casinhas disponibilizadas em praças públicas ou ambientes de grande circulação.
Cada casinha conta com apoio de voluntários, que se intitulam apadrinham a unidade e se tornam responsáveis por cuidar e arrecadar mais livros para serem disponibilizados.
Com o crescimento do projeto, tendo a ideia das minibibliotecas replicadas em diferentes cidades, outras ações foram pensadas para ecoar a leitura na vida de mais pessoas, unindo também quem gosta de fazer o bem, como são chamados os “investidores-anjos”.
Esses investidores ajudam a manter o clube de leitura social criado pelo Livres Livros. Por meio de doações mensais ou um valor fixo anual, um leitor é adotado.
A criança leitora receberá todo mês, durante um ano, uma caixinha com publicações enviadas pelo projeto.
“São livros que a gente escolhe de acordo com o perfil que é montado pela assistência social do projeto, conversando com as pessoas pra adoção ser concretizada. A gente conversa sobre os sonhos, sobre desejos, sobre as áreas de interesse e aí escolhemos os livros de acordo com essas informações. Nós acompanhamos esse leitor por um ano. Os de Salvador têm direito a consulta oftalmológica gratuita até os 13 anos e são acompanhados por uma rede de voluntários”, explica Raissa.
Até o momento, cerca de 200 leitores, entre adultos e crianças, foram adotados, em mais de 10 municípios baianos e outros estados. A fila de espera, no entanto, ainda é longa e quantos mais investidores-anjos surgirem mais pessoas poderão ser contempladas.
No site do projeto, tem mais informações para se tornar um (a) investidor (a) anjo.
“Casa nova, mas nem tanto”: ajude o projeto a mudar de sede
O Livres Livros já passou por diferentes desafios. No início, Raissa conta que mantinha os livros todos em sua residência. “Meu marido até quis que eu desistisse do projeto porque era livro pra tudo que é lado. Abria um armário, caia livro. Abria a porta do banheiro, caia livro novamente. Interditei dois cômodos da casa, foi uma confusão”, relembra com humor.
Por sorte e persistência de Raissa, um edital foi vencido e o projeto se mudou para uma sede com espaço maior para os livros e todas as outras ações.
“Só que veio a pandemia e tudo ficou bem difícil. Conseguimos manter o espaço por um ano, com muito sacrifício, mas chegou em um ponto que os custos estavam insustentáveis e tivemos que devolver a sede”, lamenta.
Uma construtora ofereceu um novo espaço para o projeto, só que o desafio agora é deixar o lugar seguro para armazenar os mais de 10 mil títulos.
“Não temos como começar a ocupar o espaço e trabalhar sem fazer uma reforma. As paredes estão com infiltração, a parte elétrica da casa não está funcionando. Parede infiltrada é a morte para os livros porque corre o risco de mofar tudo. Temos que dar um tratamento nas paredes para colocar as prateleiras na parede e assim tirar os livros da caixa e fazer nosso trabalho”, explica Raissa lembrando que, como esse último ano foi muito sacrificante, o projeto não dispõe de recursos em caixa.
Para ajudar nesse processo, uma vaquinha virtual foi criada. As contribuições podem ser dadas aqui.
O dinheiro vai ajudar a pagar os serviços prestados pelas pessoas das comunidades, como seu Carlos, que vai cuidar da parte elétrica, além de garantir sobrevida ao Livres Livros.
“Esse dinheiro, além de ajudar a manter o projeto, também vai favorecer dezenas de pessoas que estão precisando de recursos e serão contratadas para prestar seus serviços”, conclui Raissa.
Fonte: Roberto Paim – Agência Educa Mais Brasil