Depois de viverem um pesadelo que durou 1 ano e nove meses, finalmente o auxiliar de farmácia André Arcanjo, de 42 anos, os amigos dele e parentes puderam celebrar a justiça cumprida. No mês passado, saiu a completa absolvição do auxiliar de farmácia, preso injustamente, em julho de 2021, pelo latrocínio (roubo seguido de assassinato) de um vizinho em Recife (PE).
A vitória é compartilhada não só entre os parentes e colegas que compõem o círculo social de André, mas por um total de 13.420 pessoas. Comovido com a história do rapaz, esse contingente de milhares se uniu em torno de um abaixo-assinado, hospedado na plataforma Change.org, para denunciar a injustiça no caso e cobrar pela liberdade e absolvição de André.
A luta não foi fácil, especialmente durante os seis meses em que o auxiliar de farmácia ficou preso e teve um pedido de habeas corpus negado. Apesar disso, do lado de fora, o grupo engajado na campanha que pedia justiça e liberdade para o inocente não desistiu. Débora Aleluia, colega de André, foi a criadora do abaixo-assinado que concentrou o movimento.
União venceu
Jornalista, de 24 anos, Débora conheceu André na igreja Mangue, no Recife, uma comunidade pequena, mas muito unida.
Segundo lembra a jornalista, assim que todos souberam do caso, imediatamente se organizaram para formar grupos de mobilização em defesa do colega de comunidade.
“A gente fez esse grupo muito rápido, justamente motivados por já conhecer André, saber da índole dele, saber que ele não estava envolvido nesse crime”, disse Débora. “Também porque a gente sempre viu ele como um cara muito solícito, então, a gente queria, de alguma forma, retribuir essa ajuda que ele sempre nos deu.”
Débora conta que a ajuda somente através dos meios legais e jurídicos não foi suficiente. Por isso, o grupo promoveu a petição, entrevistas na imprensa e tuitaços para pressionar o Tribunal de Justiça e o Ministério Público de Pernambuco, apontando o racismo institucional no caso. Para André, as mobilizações ajudaram o processo a andar mais rápido.
“A ajuda foi tão grande que acredito que fez muita diferença na divulgação do caso e, principalmente, no apoio”, afirmou o homem já livre de todas as acusações injustas. “Se não fosse esse apoio, a minha causa não teria essa visibilidade”, reagiu André, agradecido.
Para Débora, a justiça foi falha no episódio e que a petição online foi essencial no processo por ter dado voz à situação e mostrado que as pessoas acreditavam na inocência de André. A mobilização fez com que o caso chegasse à imprensa e a figuras públicas.
Luz no fim do túnel
Gratidão é o sentimento que fica em relação às mais de 13 mil pessoas que assinaram a petição.
Para Débora, esse montante não é apenas um número. Ela conta que cada nova assinatura que chegava ao manifesto, era celebrada. Para a jovem, esse processo de comoção coletiva foi bonito de ver, além de emocionantes os comentários deixados sobre André.
“Para a família dele foi maravilhoso. As primeiras vezes que a gente foi divulgar os resultados para a mãe dele, ela ficou incrédula, dizendo: ‘caramba, quantas pessoas estão ao lado do meu filho, estão ajudando meu filho nessa luta’”, lembrou a jornalista. “Ela fala que a gente foi a luz no fim do túnel”, disse Débora, relacionando o engajamento em torno do caso.
Emocionada, a amiga de André lembra de uma passagem marcante em um encontro com a mãe do rapaz, dona Maria do Carmo, com quem, até aquele momento, não tinha proximidade.
Um dia, Débora chegou à casa da senhora e a encontrou muito triste, chorando. Dona Maria falou à jovem que, na noite anterior, havia orado, pedindo uma luz no fim do túnel.
“E a gente chegou lá no outro dia, oferecendo para ela o que seria essa luz”, relembrou Débora sobre as assinaturas coletadas no abaixo-assinado até aquele dia.
A jornalista disse que todos que participaram da campanha por Arcanjo são parte da vitória alcançada.
“A gente acredita que todo mundo que assinou essa petição também foi luz nesse processo, porque graças à quantidade de assinaturas, a gente conseguiu mostrar que André é inocente, que a história dele valia a pena ser ouvida, e que ele era uma pessoa pela qual valia a pena lutar”, afirmou.
Racismo institucional
A luta pela libertação de André foi também uma batalha contra o racismo que prevalece nas instituições brasileiras.
Homem negro, sem antecedentes criminais, o auxiliar de farmácia, em nenhum momento, se negou a cooperar com a polícia.
Não havia provas e nenhuma testemunha o apontou como suspeito, mas, mesmo assim, a Justiça demorou a inocentá-lo.
No dia do crime, André tinha ido à casa do vizinho idoso, que conhecia desde a infância, para tomar um café. No momento em que entrava, foi surpreendido por dois assaltantes.
Ele foi rendido e o idoso acabou morto pelas mãos da dupla de criminosos. O auxiliar de farmácia ainda tentou reanimar o vizinho, chamou o socorro e permaneceu no local.
Para a criadora do abaixo-assinado, a polícia “escolheu olhar para um homem negro como um criminoso”. Na petição, Débora conta que as autoridades ignoraram quem André realmente é: “um homem íntegro, solícito, trabalhador, amável, extremamente carinhoso”.
É também com carinho que a jovem se refere ao amigo. Ela comenta que essa amizade se desenvolveu muito rápido, já que ambos compartilhavam a responsabilidade de cuidar do espaço de natureza que André criou na igreja.
“Dada essa proximidade, eu sempre via o André como essa pessoa amável, sensível, e muito na dele”, enfatizou a jornalista, acrescentando que foi muito difícil vê-lo ter uma visibilidade negativa de acusação, de alguém que ele não é.
“Como amiga, me senti compelida a defendê-lo e a mostrar para as pessoas que ele não é essa coisa ruim que o racismo diz ou que a justiça tá falando. Ele é uma pessoa incrível, ótima. E se for para trazer a visibilidade a ele, que seja por essa ótica, porque ele já é uma pessoa super tímida, então se for para falar dele, eu vou aqui defender com unhas e dentes”.
O próprio André também aponta o preconceito como o motivo de sua prisão.
“Acredito que minha cor e classe social foram um fator para ser ‘confundido como marginal’. Eu fui um de muitos que estão sofrendo essa injustiça. Por isso, não posso ficar calado sobre tal caso”, falou.
Além de auxiliar de farmácia, o rapaz é membro da igreja, baterista e cuidava das plantinhas do local, regando e plantando-as ao menos uma vez por semana.
Hoje, depois da injustiça que sofreu, diz andar na rua com desconfiança, sempre achando que “tudo pode acontecer” por causa da discriminação e do preconceito com a sua cor e classe social.
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A luta continua
Embora a vitória tenha sido alcançada nesta história, o racismo faz com que a luta continue.
André Arcanjo, Débora e outros militantes que se engajaram na campanha seguirão em batalha para vencer o preconceito e para que outras mães de homens negros presos injustamente também possam celebrar a liberdade de seus filhos, assim como a mãe de André.
“A gente entende que a luta de André é a luta de um homem negro para sobreviver no Brasil hoje, a gente reconhece políticas de morte que incidem sobre a vida de um homem preto e que nesse caso de André não conseguiu se efetivar. Eu acho que a nossa luta é muito para trazer uma política de vida”, disse Débora.
Segundo a jornalista, a batalha superada no caso de André Arcanjo trouxe felicidade por ser um exemplo de vitória, em alguma medida, em uma pequena expressão dessa política de morte.
“Isso já é suficiente para que a gente tenha esperança. Então a nossa luta continua com a esperança de que essas políticas de morte vão ser destruídas”, concluiu.
Entre os movimentos que se uniram à campanha de justiça por André Arcanjo estão a Articulação Negra de Pernambuco, o Fórum Popular de Segurança Pública de Pernambuco, Movimento Negro Evangélico, Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, entre outros.
O processo judicial foi encerrado com a absolvição do auxiliar de farmácia e de outras pessoas acusadas junto com ele – todas foram declaradas inocentes. Os verdadeiros culpados, que aparecem nas imagens do assalto à casa do idoso, ainda não foram identificados.
Em parceria com a Change.org.