Uma mulher com catatonia, de 41 anos, acordou 20 anos depois. O despertar dela foi possível graças ao tratamento inédito aplicado a pacientes psiquiátricos. A terapia consiste em associar remédios para doença mental e outros específicos para lúpus, doença autoimune.
April Burrel, moradora de Maryland, nos Estados Unidos, era uma jovem que estudava Contabilidade na universidade, ajudava o pai, militar do Exército, e convivia em harmonia com os sete irmãos em família. Porém, aos 21 anos, teve um surto psicótico e ficou paralisada.
“Ela apenas olhava e ficava parada lá […] Ela não tomava banho, não saía, não sorria. A equipe de enfermagem tinha que manobrá-la fisicamente”, contou o médico Sander Markx.
April e catatonia
Diagnosticada com esquizofrenia, April foi internada e permaneceu numa instituição psiquiátrica, mantendo um quadro de catatonia. Nos últimos anos, foi descoberto que ela tinha lúpus, doença autoimune, que havia atingido o cérebro.
O médico Sander Markx, estudante de medicina em 2000 e hoje o diretor de Psiquiatria de Precisão da Universidade de Columbia, conheceu April ainda na juventude. Ele ficou impressionado com a moça na ocasião.
Anos depois, um colega do médico disse ter encontrado, no mesmo hospital onde estava April, uma paciente catatônica, descrevendo em detalhes o que ele, décadas antes, havia observado.
“Foi como um déjà vu porque ele começou a contar a história”, disse Sander. “E eu fiquei tipo, ‘O nome dela é April?’”
Surpreso, Sander não conseguia acreditar que nada havia mudado em tantos anos. Ele convocou um esforço coletivo com médicos de várias áreas para examinar a paciente.
Evidências conclusivas
A primeira evidência conclusiva estava no exame de sangue: mostrou que o sistema imunológico estava produzindo grandes quantidades e tipos de anticorpos que estavam atacando seu corpo.
As varreduras cerebrais mostraram evidências de que os anticorpos estavam danificando os lobos temporais de seu cérebro, áreas implicadas na esquizofrenia e na psicose.
Como hipótese, a equipe levantou a possibilidade de esses anticorpos terem alterado os receptores que ligam o glutamato, um importante neurotransmissor, interrompendo a forma como os neurônios podem enviar sinais uns aos outros.
Embora April tivesse todos os sinais clínicos de esquizofrenia, a equipe acreditava que a causa subjacente era o lúpus, um distúrbio autoimune complexo no qual o sistema imunológico se volta contra o próprio corpo, produzindo muitos anticorpos que atacam a pele, as articulações, os rins ou outros órgãos.
A suspeita era que o lúpus parecia estar afetando apenas seu cérebro. “Não sabemos quantas dessas pessoas estão por aí”, disse Sander. “Mas temos uma pessoa sentada na nossa frente e temos que ajudá-la.”
O tratamento
A equipe médica trabalhou para neutralizar o sistema imunológico enfurecido de April e iniciou um tratamento intensivo de imunoterapia para lúpus psiquiátrico.
Durante seis meses, April recebia “pulsos” curtos, mas poderosos, de esteróides intravenosos por cinco dias, além de uma dose única de ciclofosfamida, uma droga imunossupressora pesada normalmente usada em quimioterapia e emprestada do campo da oncologia.
Ela também foi tratada com rituximab, um medicamento inicialmente desenvolvido para linfoma.
O tratamento é cansativo, exigindo uma pausa de um mês entre cada uma das seis rodadas para permitir que o sistema imunológico se recupere. Mas April começou a dar sinais de melhora quase imediatamente.
Testes orgânicos
Para testar o grau de comprometimento cognitivo (de pensamento e raciocínio) de April foram aplicados um teste chamado de Montreal Cognitive Assessment (MoCA).
Foi pedido a April que desenhasse um relógio. Antes do tratamento, ela fez testes no nível de um paciente com demência, desenhando rabiscos indecifráveis.
Mas nas duas primeiras rodadas de tratamento, ela conseguiu desenhar meio relógio – como se metade de seu cérebro estivesse voltando.
Após a terceira rodada de tratamento, um mês depois, o relógio parecia quase perfeito.
Desenhar um relógio é uma maneira comum de avaliar o comprometimento cognitivo. Esses relógios, desenhados em April, mostram como o regime de tratamento a estava ajudando significativamente.
Ainda com psicose
Apesar da melhora, a psicose permaneceu. Como resultado, alguns membros da equipe queriam transferir April de volta para o Pilgrim Psychiatric Center, onde a mulher ficou internada nos últimos 20 anos.
Porém, após uma nova avaliação, Sander observou que o melhor seria transferi-la para um local de reabilitação.
Emocionada, Guy Burrel, irmã de April, parecia não acreditar que ela estava de volta. April lembrou da casa da família e de alguns detalhes.
“Ela relembrou sua casa de infância em Baltimore, as notas que tirou na escola, sendo dama de honra no casamento do meu irmão”, disse Guy. “Ela conhecia todos nós, lembrava-se de coisas diferentes de quando era criança.”
Quando o pai de April apareceu na videochamada, ela comentou: “Oh, você perdeu o cabelo”. A família sentiu como se tivesse presenciado um milagre.
“Foi como se ela tivesse voltado para casa”, disse Sander. “Nunca pensamos que isso fosse possível.”
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O reencontro no tempo
O caso de April impressionou o jovem médico, que a conheceu por volta dos 20 anos.
“Ela foi a primeira pessoa que vi como paciente”, disse o médico. “Ela é, até hoje, a paciente mais doente que já vi.”
Foram duas décadas até que os dois se encontrassem novamente. Após meses de tratamentos, April acordou.
“Estas são as almas esquecidas”, disse Sander sobre os pacientes psiquiátricos que convivem por anos com a doença e estão em tratamento em instituições. “Não estamos apenas melhorando a vida dessas pessoas, mas também trazendo-as de volta de um lugar de onde não pensei que pudessem voltar.”
A partir do caso de April, vieram outros pacientes com histórias de vida semelhantes.
Outros casos
Pesquisadores que trabalham com o sistema de saúde mental do estado de Nova York identificaram cerca de 200 pacientes com doenças autoimunes, alguns internados há anos, que podem ser ajudados pela descoberta.
A pesquisa ganhou a adesão de cientistas na Alemanha e Grã-Bretanha que também conduzem estudos semelhantes, identificando processos autoimunes e inflamatórios que podem ser mais comuns em pacientes com uma variedade de síndromes psiquiátricas.
Para os cientistas, as pesquisas e os tratamentos em curso devem ajudar a um grupo de pacientes.
Estudo, publicado no ano passado na revista científica Molecular Psychiatry, identificou 91 pacientes psiquiátricos com suspeita de doenças autoimunes e relataram que as imunoterapias beneficiaram a maioria deles.
Belinda Lennox, chefe do departamento de psiquiatria da Universidade de Oxford, está inscrevendo pacientes em ensaios clínicos para testar a eficácia da imunoterapia para pacientes com psicose autoimune.
Além das condições autoimunes mais comuns, os pesquisadores também identificaram 17 doenças, muitas com diferentes sintomas neurológicos e psiquiátricos, nas quais os anticorpos visam especificamente os neurônios.
O médico neurologista Josep Dalmau, da Clínica Hospitalar da Universidade de Barcelona, identificou, pela primeira vez, uma das mais comuns dessas doenças, chamada encefalite autoimune do receptor anti-NMDA.
Na Alemanha, entrou para rotina coletar regularmente amostras de líquido cefalorraquidiano.
Com informações do Washington Post.